Transcrição da experiência do evento. Por Fabiana Rodrigues
08/03/2012 – TEMA RELACIONAMENTO
Coordenadora: Fabiana Rodrigues (FR). Profissionais convidadas: Renata Ramos (RR); Christiane Ceron (CC); Paula Pinto Silva (PPS).
Apresentação
Atenção: esta é uma transcrição de memória, já que não houve registro em tempo real. Ela tem como objetivo registrar e democratizar uma parte dos ricos conteúdos vivenciados e informações úteis, para que não se percam. Mas não há nada como a experiência completa da vivência, em todos os sentidos e profundidades. Caso você tenha participado do evento e queira deixar aqui contribuições de sua memória que não tenham sido contempladas no texto inicial, fique à vontade para construir junto comigo esta história.
Este encontro foi fruto das aulas de yoga para mulheres que ocorreram em 2011, onde as participantes sentiram necessidade de aprofundar e abrir horizontes. Tivemos a idéia de chamar profissionais de outros saberes para complementar as reflexões, práticas e saberes sobre o feminino.
Profissionais convidadas: a Renata Ramos, que é formada em artes pelo iadê em 1970, é sócia fundadora diretora da Triom, editora e centro de estudos, atua em danças circulares sagradas desde 1992 e focaliza cursos de formação desde 2004. Temos também a Cristiane Ceron, que é professora de hatha yoga e filosofia do yoga, bailarina clássica indiana, herdeira de duas gerações de professores de yoga e meditação, e dá aulas há 15 anos, coordenando a escola morada do yoga. E finalmente a Paula Pinto Silva, que é cientista social e doutora em antropologia social pela USP, investiga a trajetória da mulher na sociedade brasileira, fundou a Petora - pesquisa antropológica na vida cotidiana, é professora da ESPM.
Esta tarde foi um lindo encontro entre o feminino e o masculino dentro de todos nós. A dança circular trouxe-nos da mente para o corpo com inteligência e muita delicadeza. Meditamos juntos todo o tempo, exercitando a escuta, os gestos, a fala do coração.
A presença de três profissionais de áreas diferentes do saber, incluindo uma delas não praticante de yoga, nos revelou a maravilhosa beleza da diversidade. Foi consenso que todas ali buscamos a mesma coisa: a conexão, a compreensão do ser. Encontramos vários pontos em comum nas formas de buscar, mas também algumas divergências. O que foi muito rico. Meditamos juntos, exercitando o gestual, a fala e a escuta do coração. E aprendemos muito uns com os outros. E agora que nos reunimos pra nos debruçar sobre isso percebemos que foi um encontro anti-feminismo e anti-machismo. Pela união destas duas polaridades dentro de nós.
A DANÇA CIRCULAR
Renata Ramos (RR): o círculo traz pra gente algo que o mundo está precisando muito hoje em dia. O ninho, o útero, o elo, a concha, o lar, o aconchego. O feminino. O mundo já está há muito tempo árido, violento. Eu trouxe uma concha (lindíssima, de madrepérola por dentro, uma concha rasa e bem aberta, receptiva), pra marcar o centro do círculo. Então a gente dá as mãos com a palma direita voltada pra cima e a esquerda pra baixo, assim mantemos o sentido da energia circulando entre nós. E dançamos uma dança simples: um passo à frente com o pé esquerdo, duas reverências dobrando os joelhos, um passo pra trás com o pé direito, duas reverências dobrando os joelhos, um passo pro lado direito, duas reverências dobrando os joelhos. E começa tudo de novo. Muito linda a simbologia contida nestes simples gestos: o passo na direção do centro, ao encontro do outro, e o reverenciando. Os joelhos (segundo o teórico XXX, confirmar com a Renata o nome e se é filósofo, não lembro) sempre significaram algo na história do mundo. Ajoelhar-se é um sinal de respeito, não de subjugar-se, mas de mostrar-se humilde perante à grandeza do outro, sem desmerecer a sua grandeza. É um cumprimento. O passo pra trás significa afastar-se do outro, pra enxerga-lo de uma outra forma e, assim, nos percebermos melhor também diante do outro. E o passo pro lado significa o caminhar junto. A música e a dança eram da cultura grega.
E assim seguimos inspiradas, sorrindo, nos olhando nos olhos, emocionadas, movidas pela música e ao longo do tempo fomos ficando mais serenas, contemplativas de nós mesmas e das outras ali naquela roda.
Após a primeira dança comemoramos com alegria aquela oportunidade com comentários animados. Amanda lembrou das danças de roda da infância, perguntou se as crianças ainda fazem isso, Renata disse que sim, nas escolas estão resgatando.
Fabiana Rodrigues (FR): Percebi que se a gente pensar a gente “erra” o passo. É preciso estar muito presente. Deixo o pensamento voar, desconecta do círculo.
RR: bem, aqui não tem “errar”. Eu mesma que dou cursos às vezes “erro” o passo. Mas é uma prática muito natural, muito orgânica. Deixe-se levar, o círculo te ajuda, te sustenta.
Então dançamos uma outra música e dança, desta vez foi “escravos de Jó”, cantada e coreografada por um artista de dança brasileira (confirmar com a Renata). A coreografia agora era um pouquinho mais complexa, e a velocidade da música foi num crescente, exigindo mais atenção de nós, e algumas mulheres em um certo momento tropeçaram um pouco, e se divertiram muito com isso. Estávamos mais leves, amorosas conosco mesmas e umas com as outras.
RR: É sempre bom lembrar que toda prática tem o objetivo de nos levar a um estado melhor de consciência, de que a gente saia melhor do que entrou. Então por exemplo, no toque na mão do outro devemos ter delicadeza, cultivar a relação delicada com o outro, sentir se está confortável para o outro. E a alegria que sentimos é bom que ela seja serena, não esfuziante, o que nos tira do centro.
A última dança a RR chamou de Ave Maria brasileira. Os arranjos musicais eram bem brasileiros mesmo. A coreografia era muito graciosa e leve, e cada ciclo terminava com os braços ao alto e um balancinho de ombros e corpo pra direita e pra esquerda. Uma saudação à beleza do mundo e da mulher. Simples e linda. Perto do final estávamos bem serenas, algumas vezes fechando os olhos e sentindo mais fundo aquilo tudo.
RODA DE SABERES
RR: a necessidade do silêncio, do vazio, pra podermos nos sentir, fazer a conexão e nos relacionarmos conosco. A música tem o silêncio, a dança tem a pausa. É natural do Homem, precisamos das pausas. Assim como vcs têm o yoga, a minha prática é a dança circular. Eu aprendo a me relacionar comigo mesma porque aprendo a me relacionar melhor com o outro pela dança circular. É lindo a gente observar nos círculos as pessoas: os medos, as alegrias, as tristezas, o movimento corporal de cada um, e como cada um administra tudo isso silenciosamente durante uma dança. Sou uma mulher já madura, mas cho estranho quando alguém me chama pra dar um depoimento sobre como foi a minha vida, etc... Ainda me sinto tão vivendo, em processo... Mas ok, entendo, então vamos lá. Falando de relacionamento, né... vivi um casamento, me separei, tive outros relacionamentos, três filhos, dois netos três norinhas queridas. O convívio com a família me ensina muito. Minha experiência em Findhorn também. É uma comunidade na Escócia, que nasceu nos anos 70, fundadas por pessoas que não estavam concordando com a forma que a sociedade estava vivendo e se organizaram de uma outra forma, mais amorosa e sustentável, mais feminina, podemos dizer. Um dos pilares de Findhorn foram as danças circulares, que são uma prática ancestral de muitos povos ao redor do mundo, mas nasceram como prática internacional com este nome por causa de um cara que estava estudando e pesquisando as danças dos povos e foi convidado pra ir pra lá ensinar e implantar como prática pra comunidade (Findhorn). Então veja, este homem, o Bernard Voisin, que foi um dos fundadores desta comunidade se tornou o símbolo do encontro do masculino com o feminino ali. Isso foi muito bonito. E foi de lá que eu trouxe as DC. E isso mudou minha vida. É uma vivência que permeia toda a minha vida.
Christiane Ceron (CC): Sou bailarina de dança clássica indiana. São danças super densas que contêm muitos ensinamentos, porque são manifestações de lendas hindus. E a lenda é sempre uma união de muitas metáforas condensadas pra falar de um assunto. Então eu trouxe a lenda do Ganesha, numa versão que é a que eu gosto. Ganesha foi um menino que nasceu muito iluminado. Ele tinha muitos dons, e sua mãe, Parvati se preocupou muito com isso, se ele seria bem aceito no mundo sendo assim tão diferente dos demais. Então Parvati e seu marido Shiva, pai de Ganesha, procuraram um sábio pra se aconselhar. O sábio decidiu então substituir a cabeça humana de Ganesha por uma cabeça de elefante, e só que tivesse coração puro enxergaria a verdadeira face de Ganesha. Era uma criança gorduchinha, representando a prosperidade. E entre as divindades é uma das (se não a mais) cultuado na Índia, pois sua proximidade com o mundo terreno era maior do que a de Shiva e Parvati, portanto era mais fácil pedir favores, bênçãos e proteção a Ganesha, pra que ele os levasse a seus pais. Ganesha abre os caminhos até o “altíssimo”. Antes da dança fazemos uma reverência à mãe Terra, que abençoa nossos olhos, abençoa nossa cabeça, nos abençoa toda.
Chris depois de contar a lenda faz todos os movimentos da coreografia explicando o que eles significam dentro da lenda que acaba de contar. Depois coloca a música, que é a lenda contada em sânscrito, e dança em tempo real. A dança foi divina. Chris tem domínio total de cada movimento, que unidos se tornam muito complexos: cada parte do corpo faz uma coisa diferente da outra (mãos e pés não se movem pra mesma direção), mas o corpo todo está unido numa mesma intenção, harmonioso. É muito lindo e inspirador. Eu assisti pela segunda vez e me pareceu um mergulho muito complexo. A lenda tem muitos desdobramentos e a dança mil interpretações.
Paula Pinto silva (PPS): Bem, estou um pouco frustrada porque não tenho nenhuma prática física como vocês (risos). FR: mas você te sua escuta e sua fala do coração). Bem, tenho minha profissão como antropóloga, que é minha prática, pois mudou meu modo de viver. O antropólogo tem a função de mergulhar sozinho no universo do outro, e depois voltar dele e fazer suas leituras. Percebi que isso tem muito em comum com yoga e com a mitologia hindu (Risos).
RR: Sim, estamos claramente todos numa mesma busca.
PPS: Que bom nos encontrarmos aqui. Então, como quando eu fui até uma tribo indígena fazer uma imersão e levantamento pra meu estudo em 1992, pra que eu pudesse encontrar lá o que é verdade pra eles, o que realmente a cultura deles, eu tinha que ir sozinha, eu não podia ir com meu marido ou com ninguém. Eu tinha que, sozinha, me deparar com situações que, muitas vezes eu não concordava, e nessa situação você pode sentir medo, nojo, pode se encantar. Mas você está vendo a verdade deles, sem os seus condicionamentos. Não adianta querer julgar, isso não faz parte do trabalho do antropólogo. As culturas são muito diferentes entre si. Julgamento seria a partir dos MEUS valores. Agora, estamos aqui reunidos no dia da mulher. E o que é isso? Eu sonho com o dia em que não precisaremos mais ter o dia da mulher ou o dia do orgulho negro ou gay. Por que isso?! Pra compensar as inúmeras décadas em que a mulher foi maltratada pela sociedade?! E o que é ser mulher? Não é colocar brinco quando nasce uma menina. Quando eu dei à luz uma menina, a enfermeira me trouxe um cartãozinho oferecendo pra furar a orelha, e disse: quando são bebês não sentem muita dor. Puxa, só porque não sabem dizer que dói? E o choro, como é um choro a mais, no meio de tantos que ninguém sabe mesmo o que é... Fica por isso mesmo. E quando eu estava grávida, decidimos que não queríamos saber o sexo do bebê, porque queríamos um filho, não importava o sexo. Mas, se por um lado estávamos eu e meu marido certos disso, todos ao nosso redor não se conformavam, ficaram perdidos, porque não conseguiam decidir qual seria o presente a dar, nem a cor da roupinha. Então, devido à minha personalidade provocativa, aí é que gostei mesmo. Além de tudo, me vi livre das roupinhas cor-de-rosa (risos). Então veja, estamos falando de marcas que a sociedade nos impõe. Os códigos criados para sinalizar o que é ser mulher ou homem. Mas e onde fica a sua mulher subterrânea?! Fica massacrada e escondida lá no fundo, porque está fora dos códigos, é difícil codificar seus instintos mais obscuros. Venho pesquisando e trabalhando com mulheres de várias classes sociais e regiões do Brasil e estamos tentando desvendar um pouco isso. Então coloco pra vocês um convite-provocação: O QUE É SER MULHER?
FR: então convido a todos fecharem seus olhos e se conectarem com as experiências que viveu aqui hoje. (tempo: 30 seg) O que sentiu, o que ouviu, o que vc gostou, o que lhe pareceu estranho. (tempo: 30 seg) Tente ficar no lugar antes do palavreado mental, antes dos julgamentos. Conecte-se diretamente com suas sensações. (tempo: 30 seg). E agora devagarinho pode ir abrindo os olhos e se quiser expressar algo ou perguntar algo, ou se não quiser falar nada, fiquem todos à vontade.
CC: interessante vc (PPS) falar das marcas, porque eu acho importantes e acho que devemos considerar algumas marcas. Eu por exemplo que estudo as tradições e estudo e trabalho com elas no meu dia-a-dia, veja que algumas são realmente indispensáveis para a base da construção de novos saberes. A tradição tb é importante. Na tradição do yoga podemos ver isso. Se não fossem as marcas, a tradição, não poderíamos praticar. Até algumas marcas de sabedoria que mulheres mais velhas e sábias nos deixam. Não podemos descartar todas as marcas, não é mesmo?
PPS: sim, de repente vc se pega ficando velha e vc pega na pele da sua mão e puxa, e ela descola da sua mão, e vc lembra de qdo era criança e pegava na pele da mão da sua avó e puxava e ela se soltava completamente do corpo e vc ficava admirada: “vovó, nossa, sua pele é assim?!”... e agora é vc que está assim. Tem muitas marcas que nos ajudam a compreender a vida, e sim são importantes, nos conectam com a mulher subterrânea que há dentro de nós. Estas são as marcas positivas, então cabe a nós saber diferenciar o que é a boa herança e o que é marca imposta pela sociedade ou por uma cultura, porque algumas destas não contemplam nossa verdadeira essência.
FR: isso me faz lembrar a lenda da mulher-loba-mulher, da Clarissa Pinkola Estés. Ela fala do feminino selvagem ancestral. É uma lenda sobre uma loba que era mulher que era loba que era mulher. Esta loba vivia no deserto, e se ocupava de coletar ossos de mortos que encontrava deserto afora. Então quando ela conseguia juntar um conjunto de ossos que formava uma loba inteira ela montava essa loba no chão de areia doe deserto e, diante da lua cheia, começava a uivar. E alguns pedaços de carne começavam e surgir entorno dos ossos, e ela cantava mais forte, e mais carne surgia, e mais forte que ela cantasse mais rápido ia se formando uma nova loba, até que esta ficasse de pé, firme, e saísse correndo pelo deserto, e depois se transformava em uma mulher. É cheia de símbolos muito fortes. Fala da capacidade da mulher em criar algo de um lugar onde aparentemente não há mais nada: a capacidade de criação. E que o poder de fazer isso vem das entranhas, do uivo animal, da conexão com a natureza. É muito bonito.
Rubens Ferraz: qdo vc (FR) falou pra gente ficar no lugar antes do palavreado mental, eu já estava a um passo das palavras, e estava chegando em “surpresa” e “paixão”. Me senti frágil, sozinho aqui como homem no meio de vcs. Estou imensamente surpreso com este grupo e o que estão fazendo aqui. E me apaixonando por todas vocês. Que lindo. Nunca pensei que mulheres fizessem isso juntas. Os homens estão como que há 50 anos atrás das mulheres. Só conheço homens que se reuniriam se no meio deste círculo tivesse um fogo aceso pra um churrasco (risos).
RR: há homens fazendo isso sim. Procure saber do grupo chamado “guerreiros do coração”. Eles se reúnem pra ler e estudar juntos as questões do masculino.
Simone Zahran (SZ): eu tenho um grupo de 15 amigos homens que começaram num grupo pequeno como este, e há 10 anos se reúnem pra tocar tambor na mata e fazer e estudar práticas masculinas. Eles começaram assim, num grupo como este que estamos iniciando desde o ano passado. Mas vejo que não queremos uma sociedade feminista. Nem machista. Estamos aqui buscando uma outra coisa, o equilíbrio.
FR: A cada 48 minutos o fluxo de nossa respiração se alterna em intensidade do lado esquerdo para o direito, estando sempre uma narina mais livre que a outra. Observe que quando a narina direita estiver mais livre, vc está ativando o lado esquerdo do cérebro, o lado solar, masculino: iniciativa, criatividade, aventura. Quando a narina esquerda estiver mais livre, vc está ativando o lado direito do cérebro, o lado lunar, feminino: receptividade (não inatividade), poesia, intuição. Quando os seres humanos lembram de usar de fato o feminino e o masculino dentro de si, a vida fica simples, fácil e prazeroza, livre de condicionamentos. Verdadeira.
Aprendemos muito uns com os outros e saímos nutridos, com nosso observador interno afiado. Ficou em todos um gosto enorme de "quero-ir-mais-fundo".
Grata a todas as presenças inspiradoras.
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