“Devemos cultivar nosso jardim.”





A frase acima encerra a obra Cândido ou o otimismo, publicada em 1.759 pelo filósofo iluminista francês Voltaire (1694-1778). Dez anos antes, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo iluminista suíço, publicava aos 37 anos de idade seu Discurso sobre as ciências e as artes. Contemporâneos a um fenômeno de deslumbramento social pelo progresso destas áreas do saber, que hoje fazem paralelo com a tecnologia, ambos registram publicamente há dois séculos e meio, por meio de ironias literárias, sua preocupação com os desdobramentos da crise do modo de produção feudal, a inevitável transição para o capitalismo e suas consequências para a humanidade.
É possível reler Voltaire à luz do pensamento de Rousseau, e a análise do uso da palavra devemos revela que tais pensadores assumem-se como “abre olhos sociais” e estimulam a humanidade a perceber que a maneira como se recorre a conteúdos subjetivos privados é decisiva para guiar  ações diante de situações nunca antes vividas, de modo a manter  coerência às verdades profundas.
A expressão nosso jardim ganha sentidos como nossa verdade, ou nossa almanossa essência mais profunda, única, indivisível, inconfundível e não está à venda. Não está (ou não deveria estar) à mercê de modismos ou rebuscamentos, fantasias ou devaneios, "coroas de flores", nas palavras de Rousseau, que não contribuam para o REAL bem-estar humano. O que é essencial não confunde-se, não mimetiza-se a padrões locais ou rende-se a modos de ser e de produzir externos a si, só porque em determinados momentos lhes pareçam mais convenientes.
Visto o momento em que a obra foi escrita, a idéia de cultivar indica a ação de, por meio do auto-cuidado, manter-se dono das próprias condições de trabalho e sobrevivência, ou seja, de não subjugar-se e não permitir que senhor algum torne-se dono daquela força vital, daquela mente, daquela alma. Supostamente seria esta uma condição para a vida digna. A metáfora diz respeito à atenção constante, ao exercício das virtudes, ao auto-estudo, ao cultivo do que se tem de mais precioso: a base, a fonte de nutrição e sustentação, a subjetividade privada, a sanidade física e mental individual. Há que mantê-la viva, independente das condições de temperatura e pressão ambientais, da situação do governo, dos modos de produção intelectual vigentes, da mídia e de quaisquer forças opressoras. Quem tem seu jardim interno bem cultivado tem (quase?) tudo.