Manifesto por uma atitude yóguica na ciência e uma atitude científica no yoga


Colagem © Fabiana Rodrigues Barbosa, com recortes de fragmentos de imagens
do jornal A Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo. Março/2014.
Científico não é o mesmo que acadêmico. A academia é onde se investigam e partilham saberes sobre a arte de se fazer ciência. Sim, porque ciência também é arte, prática, experimentação, vivência. É fé. Todo cientista, todo pesquisador que se preze tem fé, porque sabe que não pode explicar tudo, e mesmo assim segue com suas investigações, na tentativa de refinar seu saber, colocando-o o tempo todo à prática, porque sabe da força e da importância do olhar atento a cada passo, do momento presente, sem desprezar o passado e considerando sim o futuro, afinal, estamos vivendo na matéria! O bom pesquisador mantém-se íntimo às suas verdades, inclusive para poder, se necessário, desconstruí-las e humildemente, a cada dia, abrir um olhar fresco, evitando vícios e pseudoverdades amalgamadas, construídas muitas vezes por ele mesmo. O bom pesquisador, como o yogue, está atento para recomeçar cada dia a partir do ponto mais alto em que chegou no dia anterior

Se há alguns cientistas que têm preconceitos contra artistas (e yogues), sabemos que há artistas (e yogues) preconceituosos contra cientistas. Que pena. Por que esta separação? Não requer o cientista de criatividade para investigar, testar, teorizar, quebrar paradigmas? Não é indispensável ao verdadeiro artista investigação, método e rigor como suporte para criar e produzir? O yogue é tudo isso.

CIÊNCIA (Dicionário Aurélio): s.f. Conjunto organizado de conhecimentos relativos a certas categorias de fatos ou fenômenos. [...]

“Nosso pensamento, memória e atitudes funcionam em dois níveis, consciente e inconsciente, com a maior parte funcionando automaticamente, nos bastidores. Como um Jumbo, voamos a maior parte do tempo no piloto automático. Assim, será inteligente darmos ouvido (apenas) à nossa sabedoria interna, simplesmente confiar na nossa ‘força interior’? Ou deveríamos submeter (também) nossos impulsos intuitivos com mais frequência ao discernimento cético (científico)?” MYERS, D. G. (2012).

No pensamento científico, por exemplo, dá-se crédito a citações e/ou fontes de inspiração, seja escrita ou falada, pois sabe-se que representam o percurso de um pesquisador, um produtor de conhecimento, de subjetividades. Há respeito. E para situações em que não há respeito às citações, há leis que regulamentam os direitos dos autores e os protege contra o plágio. Isto porque o percurso de uma pesquisa se constrói com base em saberes que já estava antes no mundo. Toda pesquisa parte de outras pesquisas e demandas, ao mesmo tempo que contribui àquelas, acrescenta, as faz crescer, e é importante que esteja explícito na produção do pensamento-ação de onde ele veio, quais suas origens, de onde partiu verdadeiramente para aqui chegar.

O olhar científico é a prática de pensar criticamente, organizar o saber e submetê-lo à experimentação, sempre com objetivo de alcançar alguma verdade. Aqui verdade entendida como: o que parece correto, justo, adequado, ético. Mas a verdade é subjetiva, já que cada indivíduo tem a sua. 

Então a abordagem do Yoga como ciência significa que, muito diferente de uma ciência pura, que independeria de qualquer preocupação de aplicação prática, estamos a falar de uma ciência composta. União de todos os Yamas e Niyamas, mistura de lógica, psicologia, geometria, filosofia e fé (que não é científica, mas promove a entrega). Isso tudo interagindo com a complexa subjetividade de cada um de seus praticantes, localizados no mundo em que vivem (tempo e espaço), atravessados pelos valores de seu contexto social. O que faz do Yoga uma ciência de beleza indescritível.

“O intelecto nu é um instrumento extraordinariamente impreciso.” L’ENGLE, M. (1973).

Estudar como nossa prática impacta em nossa psique e vida social (relacional) implica em investigações que se dão no campo da teoria e da prática. A ciência contemporânea está muito interessante, há métodos abertos, qualitativos, que não deixam de ser rigorosos. Levar um dia o Yoga pra ser parte da formação universitária dos profissionais de saúde, e dali para o CAPS e o SUS, será de muita utilidade humana. Ampliar as aplicações do Yoga na comunidade. Um sonho? Quem sabe? Ajudar mulheres,  homens e seus filhos não é algo da ordem dos caprichos. É promover saúde física e mental, bem-estar social, é prevenir patologias pelo cultivo e partilha de ferramentas auto-cuidado. É sim algo da ordem da saúde pública.

Clareza e discernimento têm dissipado muitas névoas. Sigo mais fundo. Seis a sete horas diárias de estudos e práticas, além das aulas e cursos que ministro em residências, escolas, instituições de ensino de todo o estado de São Paulo. Encontrei um grupo de estudiosos com anseios parecidos aos meus, e nossos estudos conjuntos são frutíferos. Sigo praticando e recebendo aulas semanalmente, e com humildade submetendo minha prática aos olhos de um professor que está hoje muito próximo a BKS Iyengar. Se tudo der certo, reverei Guruji ano que vem, e pretendo seguir revendo, recebendo dele ensinamentos o mais diretamente possível. O processo de certificação, em verdade, trata-se sim de mais uma forma de ter acesso de maneira muito próxima aos ensinamentos de nosso mestre. Seu rigor, inconveniente para alguns e apenas parte do processo de refinamento para outros, reflete aspectos de nossa sociedade e seus modos organizacionais de categorias profissionais. Os Assessments são uma tentativa da nossa associação de classe profissional, a ABIY (Associação Brasileira de Iyengar Yoga), de regulamentar nossa profissão, torna-la reconhecida e respaldada. Não há Instituição no Brasil que contrate um professor de Iyengar por meio do aparelho social de direitos trabalhistas como férias remuneradas, aposentadoria, etc. Todos somos autônomos, soltos em mar aberto. Mas temos uma Associação que nos fornece respaldo. Quem não está satisfeito com o formato dos Assessments pode: 1) tentar mudar (já que a ABIY está sempre em construção); 2) se submeter de coração aberto ou 3) terá que desistir de se autodenominar professor certificado em Iyengar Yoga. Não sou eu quem diz isso, e sim o regulamento da ABIY. Exatamente como na formação para qualquer outra profissão que quer ser respeitada, reconhecida e ter espaço em nosso mundo, as pessoas passam por avaliações, exames, testes de conhecimento, feitos pelas entidades reconhecidas como tal. Não é fácil mesmo. Nem sempre é justo, porque os seres humanos que ali as estão construindo as avaliações não são perfeitos, assim como eu e você. É uma longa jornada. Mas nada disso exclui uma vivência do TODO no Yoga. Ao contrário, a vivência do TODO é que possibilita a construção de algo consistente, mas que tem que ser regulamentado para ser reconhecido como profissão. Estão surgindo pessoas na ABIY de bom senso, bons julgamentos de valores. Tenho esperanças, e já que é com este método que quero trabalhar, tentarei fazer parte e ajudar, como puder, na construção de uma associação de classe digna pra nós.

“Dois fenômenos – o viés retrospectivo (síndrome do ‘eu já sabia!’) e os julgamentos superconfiantes (confiança excessiva, que nunca exercita um olhar autocrítico) – ilustram porque não podemos unicamente confiar na intuição e no senso comum.” Psicologia. MYERS, D. G. (2012).

“O princípio número 1 é que você não deve enganar a si mesmo – e você é a pessoa mais fácil de ser enganada.” FEYNMAN, R. (1997)

Pergunto-lhe: o professor precisa ou não fazer uso da ciência pra ensinar? A meu ver, o Yoga não só é passível de, como carece de compreensão e investigação científicas, enquanto estiver sendo ensinado. Na instância da prática pessoal também, só que de outra maneira, pois a ausência de olhar científico aqui incorrerá em consequências apenas para o praticante. Enquanto isso, o caso do professor envolve maiores responsabilidades. Então é claro que a utilização do viés científico na prática e no ensino do Yoga é indispensável. O próprio BKS Iyengar passa e passou quantidade incontável de horas tanto na sala de prática quanto na biblioteca. Sem o olhar científico a fé  e a entrega se tornam cegas, diz ele. Eu concordo.

A ciência do Yoga (que, espero que já esteja claro, inclui a prática E a vivência do TODO) promove estudos que têm contribuído muito com praticantes interessados no aprofundamento, que buscam refinar detalhes, investigar pormenores. Recebo feedbacks com frequência de pessoas que nem conheço e que adquiriram o Guia de Yoga para Mulheres e tiveram seus ciclos menstruais mensais reequilibrados, suas emoções pacificadas. Graças a um trabalho de organização e sistematização do conhecimento: ciência! 

Minha fala neste texto se volta aos que querem se aprofundar e me acompanhar neste mergulho nas entranhas todas do Yoga. Se você tiver interesse em contribuições neste sentido, tenho certeza que poderei dá-las. As interfaces que tenho encontrado entre o Yoga, a neuropsicologia, a psicologia social (ou relacional), a filosofia, entre outros, têm sido fantásticas e tem sido um enorme prazer pra mim compartilhá-las.

Estou em Tadasana, sthira sukham, com o olhar interno aberto, relaxado e focado, mas meus horizontes estão se alargando. Sinto-me grata e gratificada pelo universo, que mais uma vez me prova que estou no caminho certo.   

Referenciais teóricos
A Wind in the door. L’ENGLE, M. New York: FSG, 1973.
Light on Yoga. IYENGAR, B.K.S. New York: Schocken Books, 1979.
Psicologia. MYERS, D. G. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
Surely you’re joking, Mr. Feynman. FEYNMAN, R. New York: Norton, 1997.