A lua cheia, a mulher e a fertilidade

Foto acima: A ancestral afinidade da Terra com a lua é evocada pela suave inclinação das flores de Outono, que saboreiam sua esplêndida luz discreta. Lua cheia e Flores Outonais no Riacho, por Ogata Gekko, impressão em madeira em forma de leque, período Meiji, 1895, Japão.



Para os que buscam os saberes do corpo, Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem, no volume 3 de sua obra “Capitalismo e Esquizofrenia”, o seguinte exercício: que criemos para nós mesmos um “corpo sem órgãos”. E dizem que trata-se de “uma questão de vida ou morte, de juventude e velhice, de tristeza e alegria”. Consiste em concentrar-se no corpo como “tão-somente um conjunto de válvulas, represas, comportas, taças ou vasos comunicantes...” Como uma “metrópole que é preciso manejar...” “O que povoa, o que passa e o que bloqueia?” Este corpo sem órgãos só poderia então “ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam... Matéria é igual a energia... Os órgãos somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras.”

UM CORPO DE INTENSIDADES
Falamos aqui portanto de uma compreensão de corpo que não estaciona na leitura dos órgãos, ou na tentativa de manipulá-los desta ou daquela maneira, mas se amplia à compreensão das sensações geradas por esta leitura ou manipulação, e que podem também ser percebidas em estado de relaxamento voluntário (Savasana).
Ora, não deve ser tão difícil, já que a matéria de que é composto um corpo adulto  é feita de 70% água, substância absolutamente flexível e permeável. Porém ocorre que nossa mente não é feita da mesma natureza, e sim de uma outra muito mais sutil ainda. E frequentemente encontramos nossa mente enrijecida, com medo de sua própria existência sutil e fugidia, com medo de ficar neste lugar desconhecido e fugidio à compreensão racional, com excesso de desejo por controle. O que produz, via de regra,  um corpo físico enrijecido.

E O QUE TEM A LUA A VER COM ISSO?   
A lua é o satélite natural da Terra, o que quer dizer que ambas estão em constante e intensíssimo relacionamento. A lua, entre outras coisas, interfere (para não dizer rege), as águas de nosso planeta. Quem costuma frequentar o litoral sabe perfeitamente que a lua manda nas marés. E quem já observou com atenção a si mesmo norteando-se pelas fases da lua, sentiu que seus humores mudam conforme a lunação. Ou seja, a lua interfere em nossas “marés internas”, de uma forma muito sutil e fugidia, quase imperceptível aos menos atentos.
“Bendita seja a inconstância da lua – o encanto, o espanto, o portento de suas propositadas dissimulações e revelações; a repartida variabilidade de sua sombra e da sua luz. Como tranquiliza a cadência do tempo lunar, seus ajustes de aumento e necessária diminuição. Como é poderosa a ‘predominância noturna’(James Joyce) da lua e do modo particular de consciência em que pensamos como ‘lunar’. São incontáveis os encantos da lua: o modo como objetos e espaços, comuns durante o dia, assumem uma tranquila essencialidade ao luar; o modo como a lua se refletirá num rio e as inúmeras liquidezes físicas, emocionais e mentais dos seres vivos... Como suas esplêndidas passagens podem incitar à inclinação criativa, espiritual, mágica, sexual, profética e lunática... Sendo o corpo celestial mais próximo da Terra, a familiaridade com a lua com este planeta manifesta-se nos domínios das antigas divindades lunares... A Deusa Hator com cabeça de vaca, cujo leite alimenta o mundo; a Ísis de manto negro, cuja radiação enevoada cuida das sementes felizes sob o solo... A lua preside a concepção, gestação e nascimento, aos ciclos agrícolas de semeadura e colheita, a toda a transformação em ser. É a dona da umidade, dos líquidos da vida incluindo a seiva, a saliva, o sêmen, o sangue menstrual, o néctar e os venenos das plantas e animais... o fluxo e refluxo de todas as massas de água” (1).

CHEIA E LUMINOSA  X  VAZANTE E OBSCURA
Foto acima: As fases da lua são aspectos variáveis em ciclos recorrentes de tornar-se visível.


“Quando cheia e radiante, o ‘círculo sem mácula’ (Tu Fu, ‘Lua cheia’) é o símbolo budista da tranquilidade e da verdade perfeita.” Na cheia, temos um momento ideal para abrir as comportas, deixar emergia, trazer à luz nossas entranhas. É o momento de deixar o plantio florescer, dar-se em fruto. “‘Qualquer pessoa é uma lua’, escreveu Mark Twain, ‘e tem um lado obscuro que não mostra a ninguém’. Para os alquimistas, é tarefa do perito navegar o território da alma sem mapa, e trazê-lo, tanto quanto possível, à consciência. Os perigos da empresa são intrínsecos... o perito pode emergir do lado distante da psique iniciado no autoconhecimento, ou ver-se irrecuperavelmente perdido na escuridão. (1)”
Por isso nos cabe boa orientação, de um professor, mestre, tutor ou algo que o valha, nesta empresa da jornada ao autoconhecimento, de modo que este seja consequência do aprendizado do autocuidado, do ‘exercício de si sobre si mesmo’(2). Um mestre que possa propor, conduzir e auxiliar-nos nas leituras de práticas de cuidado de si.

A LUA CHEIA, O ÚTERO E O CONCEITO DE FERTILIDADE
“Selene, a ‘brilhante’ ainda cuida de nós com seu olhar feminino. Na invisibilidade da lua nova de Hécate, a bruxa, ainda guarda os segredos da morte e da regeneração. E Ártemis, a caçadora virgem, ainda esquadrinha os céus com cães de caça estelares a seus calcanhares. A lua continua a ser amiga e musa da Terra... E ainda, na noite estrelada, a ‘mesma glória clara se estende por dez mil milhas’ (Tu Fu, ‘Full Moon’).
O útero, com seus ‘mistérios transformativos’ (1) e poder criativo, apresenta-se como, no mínimo, interessante metáfora à lua cheia, bem como à própria Terra, ‘o útero primário’ (1). Sendo assim, lua e Terra se uniriam em gestação para a criação dos seres. É claro que nesta metáfora não está reduzida simplesmente a idéia de fertilidade como o fabrico de um ser humano, mas tanto de fabrico como manutenção de todas as possibilidades de existência. Seja de um ser humano, de uma nova idéia, um projeto, uma empresa. Entendemos aqui portanto fertilidade como abrangente possibilidade de vida, solo fértil.
“Os templos indianos têm como santuário central uma garbhagriha ou casa-útero onde a pessoa recebe a darshan, uma visão luminosa do divino. No simbolismo védico, o fogo está escondido na madeira como num útero, e depois é produzido num fogo ritual, tal como o espírito divino está escondido no interior, e depois é produzido através da meditaçãoo e cânticos Om. ‘Onde o fogo é agitado... é onde a mente é formada’(Upanishade Svetasvatara, I.13-14, II.6). Os hinos védicos de Hiranya-garbha, o Útero Dourado ou Embrião Dourado, o Divino radiante que se manifesta através de toda a criação (Rig Veda X.121)” (1).

YOGASANAS E FERTILIDADE
Então algo só pode ser fértil de está em equilíbrio e portanto saudável. Mas, se quisermos ainda falar estritamente da fertilidade fisiológica, como a possibilidade de conceber um feto, encontramos as sábias palavras: “Do ponto de vista yóguico, o tempo antes de uma criança ser concebida é tão importante quanto a gestação de fato. Uma vez que você decide engravidar, você deve se prepara com uma dieta balanceada, e desistir de álcool, drogas, nicotina e cafeína. E isso não é apenas recomendável para a mulher, mas para o homem. A decisão deve ser tomada por ambos, que têm que se preparar holisticamente à maternidade e à paternidade. É aconselhável que não só a mulher mas o homem também pratique yoga, afinal, o que é bom para a pélvis feminina e seus órgãos reprodutores, é claro que é bom bom também para a pelve masculina e seus órgãos reprodutores. A prática do Yoga com este foco vai otimizar a circulação sanguínea na pelve e órgãos reprodutores. Vai tonificar a coluna vertebral e consequentemente o útero, e potencializar e fertilidade. Mentalmente, Yoga cria equilíbrio emocional. É importante ajustar a prática de Asanas ao seu ciclo menstrual. Para a mulher que deseja engravidar, este ajuste é um pré-requisito à concepção ou mesmo para quem deseja a fertilização in vitro” (3).   
‘Ajustar a prática de Asanas ao seu ciclo menstrual’ significa escolher e praticar atentamente e com a devida atenção ao alinhamento apropriado para seu corpo físico, os Asanas adequados para o período menstrual; que são diferentes dos adequados para o período pré-ovulatório (preparando o solo); que são diferentes dos adequados para o período pós-ovulatório, evitando tudo o que possa causar aborto e equilibrando a glândula tireóide (já que uma deficiência nas funções desta glândula pode causar aborto). E se você ainda não engravidou, é necessário cuidar de todo o equilíbrio hormonal, osteomuscular, articular e mental nos períodos pré e pós-menstrual.  
A base deste trabalho é criar aterramento e equilíbrio físico e mental: ao mesmo tempo em que contempla suas fases mensais, observa as fases lunares. É muito bom se você menstrua na lua nova, porque estará fértil na lua cheia, alinhando suas potencialidades internas às marés do planeta. Costumo dizer que menstruar na lua cheia é como tentar meditar no meio de uma festa: é possível se você realmente quiser ou precisar, mas não é o mais propício ou favorável.
Temos casos de praticantes que, só pelo fato de começarem a praticar com este respeito a seu ciclo, em três meses tiveram seu período fértil deslocado da lua nova para a lua cheia. “É uma maravilha e nos surpreendemos com a simplicidade deste fenômeno. Mas por que é que nos surpreendemos? Porque estávamos de fato bem desconectadas da importância deste alinhamento”, diz uma das praticantes.
Então, direciono agora minha fala especificamente para praticantes e professores do método Iyengar, que já conhecem e amam o cuidado com os alinhamentos internos ao seu corpo físico e mental: ajustar sua prática de Asanas ao ciclo menstrual vem do mesmo cuidado: alinhar as partes para harmonia do todo, que é a natureza da qual fazemos parte.

PRÓXIMO CURSO, NA LUA CHEIA DE ABRIL:

TEMA  >  YOGA PARA MULHERES: Yogasana + ciclo lunar + feminino: saberes ancestrais unidos para um solo fértil (físico, mental e espiritual) da mulher contemporânea.  

data  >  sábado 27/04, 9h a 13h
inscrições  >  11-999955769. 
Mail: contato@iyengaryogasaopaulo.com.br
info  >  fabirodriguesyoga.blogspot.com.br/

Foto acima: Vaso de barro com relevo de mãos na barriga, 4.850 a.C., Lepenski Vir, Iuguslávia.






REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) KOBLER, F. (2010). Criação e cosmo. O livro dos símbolos – reflexões sobre imagens arquetípicas, Colônia, p. 26-28, 2012.
(2) FOCAULT, M. (1984). A ética do cuidado de si como prática da liberdade. Ditos & escritos – V – Ética, Sexualidade, Política, Rio de Janeiro, 2004.
(3) IYENGAR, G.S.; KELLER, R.; KHATTAB, K. Preparing for Pregnancy. Iyengar Yoga for Motherhood – Safe Practice for Expectante and New Mothers. New York, p. 14, 2010.

3 comentários:

  1. Que bom que você voltou a escrever!
    Abração

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  2. Que bom! Voltamos ao período de partilha. Bjs

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  3. Muito bacana, Fabi! E tudo tão alinhado com o que tenho lido sobre fertilidade e medicina chinesa.

    Tudo levando para o mesmo destino: reconexão. Com nossos atos, nossas palavras, nossos pensamentos, nossos corpos, nossa única natureza, que é a mesma natureza do universo. Namastê, Lu Cury

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