Depois daquele corpo que fiz...


Depois daquele corpo que fiz...
(ou quando a postura corporal esculpe a mente)

Virabhadrasana 1 é o nome de um Yoga Asana (palavra sânscrita que pode ser traduzida grosseiramente[1] como postura corporal yóguica). Virabhadra é um herói mitológico, originário do impacto de um fio de cabelo atirado ao chão após ter sido retirado dos cabelos emaranhados do grande Siva, deus da construção e da destruição, então enraivecido por ter perdido sua esposa que se suicidou por ter sido humilhada. Do encontro do cabelo com o chão emergiu o poderoso Virabhadra, que vingou-lhe em batalha vencida a morte da esposa. Virabhadrasana é portanto um Asana dedicado ao poderoso guerreiro criado por Siva a partir de seu fio de cabelo emaranhado.

Costumamos dizer no meio yóguico que realizar este Asana com dedicação, evoca e convoca em nós uma atitude de poder. Sua execução exige força, precisão (com ajustes corretos, que não só impedem a coluna vertebral de colapsar ou ser comprimida, mas promover expansão vertebral, otimizando bastante a respiração), concentração em cada uma das partes do corpo e ao mesmo tempo no conjunto das ações. Para executá-lo é preciso estar completamente imerso nesta tarefa. Durante aqueles segundos, nada mais existe no mundo, e o praticante é todo força, coragem, atitude positiva, vontade de vencer seus próprios obstáculos. Acontece então uma verdadeira batalha interna, onde emergem fantasias e fantasmagorias. E é quando conseguimos superá-las que de fato entramos o Asana. Nosso professor Faeq Biria diz que, dos Asanas de pé, este é o mais Pranayamico, ou seja, que mais ativa o Pranayama, que pode, também grosseiramente, ser traduzido como respiração. Aprofundando-se o significado de Pranayama, chega-se a uma das interessantes definições de BKS Iyengar:


Pranayama portanto tem um especial significado e importância em Yoga. Prana significa respiração, o ar e a vida por si só. Mas em Yoga, prana (em todos os seus cinco aspectos no Homem de Prana, Apana, Vyana, Udana and Samana[2]) é a própria essência do princípio de energização do mundo animado e inanimado. Permeia todo o universo. E Pranayama significa o controle total deste princípio de energização em seu próprio ser por meio de uma certa disciplina. Esta disciplina almeja não simplesmente uma boa saúde, um equilíbrio na energia física e vital, mas também a purificação de todo o sistema nervoso, objetivando maior capacidade de responder ao desejo do Yogi de controlar as urgências dos sentidos, e em fazer os poderes mentais mais sutis e sensíveis para a chamada do impulso evolutivo, a natureza [...] mais elevada no homem.”[3]   


Uma prática bem conduzida deste Asana de fato esculpe um estado mental vigoroso. Mas ele não vem sozinho. Sempre recomenda-se que a prática contenha Asanas de abertura (preparação para os vigorosos como Virabhadrasana) e de fechamento (onde aquietamos o corpo). No relaxamento final promovemos “a calma que o cérebro precisa para realizar a absorção da experiência e transformá-la em memória de longo prazo”[4].

Compartilho uma experiência pessoal em que tive de me munir de coragem e fiz bom uso de uma prática de Virabhadrasana 1 combinada a outras posturas de pé para ativar esta força interna. Há muitos anos decidi fazer um breve retiro sozinha, isolada da cidade, numa praia minúscula do litoral paulista onde só se tinha acesso via trilha pedestre ou barcos de pescadores locais. A época do ano não era de temporada, ou seja, na praia só estávamos eu numa cabana alugada de pescadores, e a comunidade local, composta por uma pequena igreja e uma média de 20 casas de famílias caiçaras, das quais eu havia conhecido apenas uma única mulher, seu marido e seu pequeno filho, que me alugaram a pequena cabana de um só cômodo. Não tínhamos luz elétrica na comunidade, e uma vez o banho gelado antes do pôr-do-sol garantido, quando caiu a primeira noite foi que me dei conta de que, dada a localização da cabana alugada, se algo a mim ocorresse no meio da noite, demoraria muito para que alguém soubesse. Senti medo, que sorrateiramente se transformou em pavor. Todos os ruídos da mata cresceram. Pensei em procurar ajuda, mas como me deslocar em meio àquela escuridão apenas munida de minha lanterna? As chances de me perder entre os caminhos da vila eram grandes. E também, ajuda para quê, especificamente? Mudar de cabana àquela altura da noite seria inviável. Afinal, nada havia acontecido. Me recolhi, fechei porta e janelas. Passado algum tempo, alguém bate na porta. Assusto. Respondo de dentro: pois não? Ouço a voz de um homem perguntando por alguém que não era eu. Respondo de novo que a pessoa não estava ali e que em nada eu lhe poderia ajudar. Ele insiste na pergunta e soma-se à voz dele a de um outro homem. Quase me apavoro, mas engrosso ainda mais a voz com toda a braveza que posso reunir e firmemente ordeno que se retirem, pois ali nada havia que lhes pudesse interessar. Silenciam. Tenho a sensação de que se afastam. Acendo mais velas e um incenso, pedindo proteção espiritual e física. As sombras das velas tornam-se imensas e assustadoras. Qualquer pequeno ruído é um sobressalto. Sinto-me acuada. A cabana fica aos pés de uma pequena encosta, que projeta uma sombra imaginária em toda a minha morada provisória. Sem sinal de celular. Nenhum meio de comunicação. Tento me conectar à força do mar, que não posso ouvir, pois estou a pelo menos 2km dele, mas posso sentir, com alguma concentração. Penso e repenso no que poderia fazer se acaso eles voltassem. Organizo um esquema mental. E começo uma prática de posturas de pé. Minha permanência em Virabhadrasana nunca foi tão longa e tão potente, tamanha a minha sede daquela força. Em meu corpo circula puro fogo, sangue quente. Minhas articulações rapidamente se soltam. Meus músculos fortes como nunca. Minha mente livre, absolutamente mergulhada, fundida naquilo. Era isso ou pirar de medo e impotência. Parecendo a única saída no momento, me entrego por completo. De todos os recursos, naquela noite, esta prática foi a que mais funcionou. Foi algo tão visceral, que nem tomei banho depois. Deitei na cama para o relaxamento final, com esperança de pegar no sono e ganhar noite adentro algum descanso merecido e gratificado por aquele começo desafiador de meu retiro ter se resolvido bem. No dia seguinte, a primeira coisa que fiz depois do precioso banho de mar foi reportar o ocorrido à família que me alugou a casa. Tradicional na simplória comunidade, mesmo que em sua vida de poucos recursos, a família tinha respeito e autoridade social entre os seus. A esposa me conta que já ocorreu outras vezes e que, de fato, há homens que procuram por turistas que queiram pagá-los em troca de sexo. Quase desisto de meu retiro quando ouço a notícia, mas ela me garantiu que havia um código que todos respeitavam: sendo a comunidade avisada que não era o caso, e que meu interesse ali era um retiro absoluto e que não queria ser incomodada, assim seria. Duvido por alguns minutos de aquela mulher simplesmente estar interessada em garantir a renda do aluguel. Examino-a com mais cuidado. Ele me garante, fixando o olhar. Sinto alguma confiança nela, que chama o marido e o faz ir até uma das rodinhas de caiçaras e lançar o primeiro aviso, pedindo que se espalhe. Não sei se acho bom ou se fico mais preocupada ainda. Ela me garante de novo, pede desculpas pelo transtorno, o marido idem. Ficam constrangidos. Vivendo e aprendendo. Quando é que eu imaginaria algo do tipo há tanto tempo atrás? O fato é que, uma vez o código anunciado, tive total privacidade em meu retiro de cinco dias de silêncio. Segui todos os dias praticando na cabana, de modo que minha energia pessoal se tornou firme. Nas noites que seguiram, manifestaram-se minhas questões internas mais profundas, que emergem quando se está sozinho em situação de retiro, sem falar com ninguém. Pra lidar com elas, lancei mão de meditações, reflexões e da prática, fogo que queima.

É claro que tive sorte de estar numa comunidade de código ético (relativamente) íntegro. Posto isto, ainda assim ter passado por uma situação limite como esta com o apoio daquela poderosa prática enraizou em minha memória corporal e emocional seus efeitos. Principalmente de Virabhadrasana 1. Sempre que preciso deste tipo de energia vital circulando, a primeira memória instantaneamente ativada é a desta experiência. Inesquecível, de força didática impressionante. 

Mas podemos assumir que meu depoimento é suspeito, já que vem do interesse de ratificar todo o texto acima. Por isso abro um espaço aqui para depoimentos sobre efeitos psíquicos objetivos de práticas yóguicas. Partilhas são benvindas e úteis, como pequenas flores na beira da estrada, que ajudam a compor os sentidos da jornada do yoga.

Namastê!



REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

[1] Grosseiramente, pois Asana também significa Assento. Da mente no corpo. Da alma no corpo. Da alma na mente. Do corpo na alma, e assim sucessiva e reciprocamente. Asana tem sentidos abrangentes, como toda palavra sânscrita, que é uma língua extremamente filosófica. Pra começar, a cultura sânscrita acredita que o som de cada letra vibra em nossos centros energéticos, pontos por onde se cruzam os canais sutis que conduzem a energia vital, que flui em nosso corpo. Estes pontos, chamados também de chacras, onde os canais de energia vital (ou Prana) se cruzam, tornam-se poderosos vórtices, centros de energia, com qualidades específicas, advindas da maneira como os canais ali se encontram e do posicionamento na região do corpo, cada uma com suas características e funções também específicas. Portanto, se cada letra do alfabeto sânscrito vibra em determinados centros energéticos, ativando-os, alterando seus estados, estes sons teriam o poder de mudar o estado de características de nossa energia vital. E até mesmo dela toda. Imaginem enfim o que pode ocorrer com palavras inteiras. Este é o poder do canto de mantras, por exemplo, segundo a cultura do Yoga.
[2] Apana, Vyana, Udana, Samana: diferentes modos do fluxo de Prana no corpo.
[3] IYENGAR, BKS. Light on Pranayama – the Yogic Art of Breathing. New York: Crossroad, 2004. P. XVii.
[4] ROBIN, MEL. A physiological handbook for teachers of yogasana. Tucson: Fenestra Books, 2002. P. 42.